Artigos

O lugar da Donana

Belford Roxo, um dos treze municípios que compõem a Baixada Fluminense, ficou conhecido durante muito tempo pelos altos índices de homicídios ocorridos na região, frequentemente noticiado nas páginas policiais dos jornais de grande circulação. A cidade era também lembrada na maioria das vezes pelos seus aspectos negativos, como, baixa escolaridade, um ínfimo número de aparelhos culturais, falta de saneamento básico, e marcada pela ausência de políticas públicas para promover a cidadania dos seus habitantes.

O saudoso sambista Bezerra da Silva, certa vez em referência a cidade, cantou: “urubu de Belford Roxo foi dizer lá na polícia, que já está de bico frouxo de comer tanta carniça”.

Durante muito tempo a imagem que se consolidou acerca da região foi a de uma cidade estigmatizada pelos altos índices de homicídios. Em contrapartida os movimentos sociais sempre foram atuantes em Belford Roxo, em especial o movimento negro que já se reunia na casa de Dona Ana no bairro Piam. Dona Ana tinha sete filhos, em sua maioria, educadores e músicos. Em meio a discussões políticas os filhos de Donana encontraram uma outra forma de fazer política, em especial Dida e Marrone que montaram uma banda chamada Desaguada e passaram a se apresentar em festivais de música promovidos pela Igreja Católica. Algum tempo depois o Desaguada deu lugar ao KMD-5, simultaneamente, surgia na região um outro grupo chamado Lumiar, ambos passaram a ensaiar na casa de Donana e na casa de Da Gama, adotaram o reggae para se expressar.

Com o passar do tempo os ensaios juntavam um número maior de pessoas, a casa de Donana passou a ser conhecida como o Centro Cultural Donana, que além dos ensaios de Lumiar e KMD-5 apresentava peças de teatro, oficinas de dança, capoeira, maculelê, sarau de poesia, e também passaram a realizar festas chamadas Afroreggae. As festas começaram a atrair um público cada vez maior e muita coisa. A partir de então, a cidade passa a ser citada nos cadernos culturais dos jornais devido ao grande número de bandas de reggae oriundas da região. Belford Roxo passou a fazer parte do roteiro do público do reggae carioca a partir de então. Naquele momento as principais bandas de Belford Roxo eram KMD-5, DIAOP, Ubandu Du Reggae, Baixáfrica, BBBT, Conexão Xangô, Postura Africana e o Lumiar. Esses grupos mostravam uma postura engajada com as causas sociais, fazendo dos shows praticamente uma manifestação política. Após realizarem várias atividades no Centro Cultural Donana com grande repercussão, foram documentados por importantes meios de comunicação como a BBC de Londres, MTV francesa, MTV americana e o programa Brasil Legal da Rede Globo.

O Centro Cultural Donana desempenhou um papel fundamental não apenas para o movimento reggae de Belford Roxo, mas também contribuiu para transmitir uma visão positiva acerca da região, visto que, despertou nas pessoas envolvidas com a música reggae, não somente a curiosidade por conhecer as bandas da Baixada, mas também a necessidade de conhecer melhor a vida da região.

Durante muito tempo a ótica preconceituosa, atribuía à cidade um lugar desfavorecido, desagradável e perigoso, cujos cidadãos não estariam em condições de produzir nada que pudesse ter relevância cultural. Diante dessa desqualificação, diversos artistas da Baixada Fluminense têm contribuído para mostrar que a produção musical da região vem atuando positivamente no sentido de construir uma identidade, que se afaste da imagem estigmatizada, onde estereótipos reducionistas tendem a esconder a diversidade e a intensidade cultural de uma vasta e complexa região, que está longe de ser uniforme, cujas manifestações mostram grandes diferenças, múltiplas peculiaridades nos diversos bairros que a compõem. Muitas vezes, essa região é vista apenas como sinônimo de miséria, violência e banditismo institucionalizado.

O estigma, a imagem fixada reduz a diversidade de manifestações e as múltiplas possibilidades dos cidadãos dessa área. Nela, como em outras regiões do Estado, incluindo a Zona Sul, há violência, marginalidade etc. Mas a classificação estigmatizante ressalta as características negativas. Porém, a Baixada Fluminense possui uma multiplicidade cultural que vai além das tentativas de mapeamento ou aprisionamento por parte dos que olham com uma perspectiva que diferencia centro periferia, desvalorizando os que habitam a denominada periferia.

Os músicos da Baixada tornaram-se atores sociais que utilizam diversos tipos de expressões culturais, para construírem uma nova concepção da própria identidade, capaz de redefinir sua posição na sociedade e, ao fazê-lo, tentar ter impacto em toda a estrutura social. Esse é o caso do movimento reggae do município de Belford Roxo que, através de manifestações sistemáticas conseguiram recriar sua identidade de forma positiva desfazendo a imagem pejorativa da Baixada, cristalizada no senso comum. A geração de uma nova visão da identidade dos moradores da área tem relação com as formas culturais manifestadas na região. Esse fenômeno artístico, social, vem possibilitando que os moradores se identifiquem com a proposta dos músicos da cidade, através da audição de músicas engajadas e propositivas.

A música tem desempenhado um papel fundamental na produção social de subjetividade, na medida em que esta manifestação artística vem cumprindo um papel importante para a construção de uma identidade local, que contesta determinadas visões que estigmatizam os moradores da Baixada, apresentando-se assim como estratégia de resistência cultural.

Os artistas adotam o reggae para exprimir questões que afetam sua comunidade. É possível pensar a produção musical, como um elemento que tem contribuído na construção da cidadania, atiçando a tomada de consciência sobre as várias formas de exclusão sofridas pela população da Baixada Fluminense. A música, no município de Belford Roxo, pode ser entendida como um sinalizador cultural, operando como um ingrediente ativo na formação da identidade e da memória social desta comunidade. A música vem proporcionando a elaboração de propostas afirmativas, saídas para a cidadania.

  • Publicado em 28 de novembro de 2021.

 

Matéria original de 15 de junho de 2007 por Adriano Dias.

Atualizada em 27 de novembro de 2021.

Portal C3 | Comunicação de interesse público | ComCausa 

Adriano Dias

Jornalista militante e fundador da #ComCausa

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *