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Chacina da Candelária Completa 30 anos

Em uma sexta-feira, dia 23 de julho de 1993 por volta das 22 horas, gritos romperam a noite no entorno da Igreja da Candelária, no centro do Rio de Janeiro, acordando alguns dos jovens que dormiam sob as marquises. Segundo relatos, homens desembarcaram de dois veículos e clamavam por “Come Gato”, referindo-se a Marcos Antônio Alves da Silva, um jovem de 19 anos que havia sido expulso de casa por ser homossexual e vivia nas ruas próximas à igreja. Diante da falta de resposta, abriram fogo contra o grupo. Esse foi o terrível início da tragédia que ficou marcada como a chacina da Candelária.

Ao final do fuzilamento, oito jovens, cujas idades variavam entre 11 e 19 anos, tiveram suas vidas encerradas em meio à violência perpetrada por disparos de armas de fogo. Foram eles: Marco Antônio, Paulo Roberto de Oliveira (11 anos), Anderson de Oliveira Pereira (13 anos), Marcelo Cândido de Jesus (14 anos), Valdevino Miguel de Almeida (14 anos), Leandro Santos da Conceição (17 anos) e Paulo José da Silva (18 anos). Além destes, um dos mortos permanece até hoje sem identificação, conhecido apenas pelo apelido nas ruas, “Gambazinho”, estima-se que tinha 17 anos de idade na época.

Quatro jovens sobreviveram, mas suas vidas foram marcadas por destinos trágicos após o ataque. Entre eles está Sandro Barbosa do Nascimento, que na noite do atentado tinha apenas 13 anos. Anos depois, ele protagonizou outra tragédia ao sequestrar um ônibus, tomando como refém a professora Geisa, que acabou sendo morta por um disparo de um policial que buscava acertar Sandro. O jovem veio a falecer asfixiado pelos policiais dentro do carro de polícia aos 21 anos de idade.

Uma menina, havia sido namorada de Sandro do Nascimento e também era uma sobrevivente, conhecida como Beth Gorda, Elizabeth Cristina de Oliveira Maia, tinha 17 anos na época da chacina. Porém, sua história foi interrompida em setembro de 2000, ela estava em Botafogo, na Zona Sul, quando três homens saíram de dentro de um carro e atiraram contra ela. Beth, que morreu com três tiros na cabeça. Era considerada uma líder e que ajudava os outros menores que conviviam com ela na época da chacina.

Conhecido como Thiaguinho, Thiago Veríssimo tinha 14 anos na época do atentado na Candelária. Ele foi morto após ser atingido por uma bala perdida na favela da Maré em 2013.

Outra sobrevivente, Gina, tinha apenas 8 anos no dia da tragédia. Após passar um período em um manicômio judiciário, veio a falecer em 2014 na casa de parentes na Zona Oeste do Rio, encerrando um destino marcado por sofrimento e dor.

Já Wagner dos Santos, que na época tinha 21 anos na noite do ataque quando foi acordado e obrigado a entrar num carro, dentro do qual foi baleado quatro vezes junto a outros dois rapazes que dormiam próximo à Candelária. Os três foram abandonados próximo ao Museu de Arte Moderna, o MAM, no Aterro do Flamengo. Dos três, somente ele sobreviveu e foi o seu relato que garantiu a identificação e prisão de quatro envolvidos no crime, três deles policiais militares. Poucos anos depois da chacina da Candelária. Wagner sofreu um novo atentado em 12 de setembro de 1994 na Estação Central do Brasil. Ele foi atingido mais uma vez por quatro tiros e resistiu novamente, em outubro de 1995. Pediu então pediu proteção ao então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, para prestar novos depoimentos sobre o caso. Sendo colocado no programa de proteção a testemunha. Mesmo assim, Wagner se exilou para Suíça e vinha ao Brasil para participar dos julgamentos dos acusados.

O motivo da chacina

No dia anterior ao massacre, policiais militares efetuaram uma prisão de dois meninos que jogaram pedras na direção dos oficiais, sendo que uma delas quebrou o vidro da patrulha do 5º BPM, onde estava o soldado Marcus Vinícius Emmanuel Borges, conhecido como “Sarrut” que conduziu dois adolescentes, que estavam cheirando cola de sapateiro e atacaram a viatura da PM, até a delegacia. No entanto, o delegado decidiu liberá-los, alegando que o produto não era classificado como entorpecente.

Essa decisão provocou indignação em Emmanuel Sarrut, que se sentiu ofendido e desafiado, pois no mesmo dia teve que voltar à Candelária, onde fazia o patrulhamento de um ato de sindicalistas. Lá, os jovens teriam zombado do PM, iniciando outra discussão. Os principais envolvidos seriam Come Gato e Wagner.

De acordo com o ex-PM Cunha, o PM Emmanuel Sarrut o chamou com os demais assassinos para dar um “susto” nos jovens. Ao se dirigirem para o local, vira Wagner andando pelo centro com outros dois garotos. Eles colocaram os três no carro e seguiram para a Candelária, mas acidentalmente, segundo Cunha, ele atirou em Wagner no meio do trajeto. Isso os teria levado a decidir matar os demais jovens.

Os dias seguintes da chacina da Candelária

O Rio de Janeiro acordou sob o impacto da notícia de que oito jovens haviam sido brutalmente assassinados a tiros próximo à famosa igreja no centro da cidade, no coração financeiro da segunda maior cidade do pais. A tragédia ganhou ampla repercussão dentro e fora do Brasil, chocando a opinião pública e gerando um clamor por justiça. As imagens dos corpos das vítimas expostos ao redor da Candelária comoveram a população e trouxeram à tona a grave situação dos jovens em situação de vulnerabilidade e abandono nas ruas da cidade.

A tragédia também trouxe à tona a realidade dos jovens em situação de rua no Rio de Janeiro, com destaque para a região da Candelária, que abrigava cerca de 70 crianças e adolescentes que haviam fugido de suas casas por problemas familiares, abusos e violência doméstica. Muitos deles não tinham documentos, o que dificultou a identificação das vítimas e a comunicação com suas famílias.

A sociedade civil se mobilizou em manifestações e protestos, exigindo justiça e medidas efetivas para combater a violência e proteger os jovens em situação de rua. A tragédia da Candelária também despertou debates sobre a violência policial e os direitos humanos, trazendo à tona questões sociais e estruturais que precisavam ser enfrentadas.

Investigação

Os sobreviventes da chacina reconheceram como os possíveis responsáveis pelo crime um grupo formado por policiais militares e ex-PMs. Incialmente a Polícia Militar deteve três agentes da corporação e um civil, identificados como soldados Marcus Vinícius Emmanuel Borges e Cláudio Luiz dos Santos, o tenente Marcelo Cortes e o serralheiro Jurandir Gomes.

No entanto, os investigadores da época enfrentavam dificuldades para estabelecer uma conexão entre eles. Essa falta de vínculo entre os suspeitos intrigou o promotor do caso, José Muños Piñeiro Filho, que atualmente ocupa o cargo de desembargador no Rio de Janeiro. Ele comenta: “Isso nos incomodava, pois, uma chacina requer motivação e os envolvidos geralmente possuem alguma relação entre si. Os quatro indivíduos não haviam trabalhado juntos e não se conheciam”.

Em 1996, pouco antes do julgamento, o promotor relatou que foi abordado por Nelson Oliveira dos Santos Cunha, ex-policial do Choque, que desejava confessar o crime e se entregar. Cunha havia passado por uma transformação pessoal, convertendo-se à religião, e carregava um peso de culpa por acreditar que Cláudio Luiz, um dos detidos, também era evangélico e não havia participado da chacina. Sob o fardo desse sentimento, ele finalmente decidiu confessar o terrível acontecimento.

Essa confissão significativa foi compartilhada pelo antropólogo Robson Rodrigues, coronel da reserva da PM e colega de Cunha no batalhão. Ao longo do tempo, o especialista realizou uma série de entrevistas com Cunha durante o período em que ele esteve preso. Esse depoimento esclarecedor levou a um novo desdobramento nas investigações, lançando luz sobre a motivação e as conexões por trás da trágica chacina.

Julgamentos

Após as investigações, os principais nomes arrolados no processo foram:

  • Marcus Vinícius Emmanuel Borges, conhecido como “Sarrut” – policial militar à época da chacina.
  • Cláudio Luiz dos Santos – policial militar à época da chacina.
  • Marcelo Cortes – tenente da Polícia Militar à época da chacina.
  • Nelson Oliveira dos Santos Cunha, conhecido como “Cunha” – ex-policial do Batalhão de Choque à época da chacina.
  • Marco Aurélio Alcântara – também conhecido como “Sexta-feira Treze”, ex-policial militar expulso da corporação.
  • Maurício da Conceição Filho – ex-policial militar expulso da corporação e falecido antes do julgamento.

As audiências judiciais, ao longo dos anos, foram marcadas por complexidades e desafios. Dos quatro suspeitos iniciais presos, apenas um se apresentou como culpado. O ex-policial do Choque, Nelson Oliveira dos Santos Cunha, mais conhecido como “Cunha”, foi quem confessou o crime e se entregou às vésperas do julgamento em 1996.

No entanto, apesar da confissão de Cunha e da identificação de outros suspeitos, os julgamentos enfrentaram desafios na busca por justiça plena. A conexão entre os envolvidos e a complexidade das provas dificultaram a definição de responsabilidades e motivações precisas. Outros três policiais, Marcus Vinícius Emmanuel Borges, Cláudio Luiz dos Santos e o tenente Marcelo Cortes, estavam detidos, mas negaram participação no crime.

Com o passar do tempo, os PMs Emmanuel e Alcântara confessaram a participação no crime da Chacina da Candelária, mas atribuíram a maior parte da culpa ao PM Maurício, conhecido como “Sexta-feira Treze”. No entanto, Maurício já havia falecido anos antes, após sequestrar um bicheiro no Rio de Janeiro.

Ao final dos julgamentos, a Justiça determinou:

  • Arlindo Afonso Lisboa Junior, foi condenado a dois anos de prisão por ter com ele uma das pistolas usadas no crime, um revólver Rossi, calibre 38, quando foi preso em 1994 por roubo de carro.
  • Nelson Oliveira dos Santos foi condenado a 243 anos de prisão pelas mortes da chacina e a 18 anos por tentativa de assassinato de Santos. Recorreu a sentença, sendo absolvido pelas mortes em um segundo julgamento, mesmo após ter confessado o crime. O Ministério Público recorreu e, no ano de 2000, Nelson foi condenando a 27 anos de prisão pelas mortes e foi mantida a condenação por tentativa de assassinato, somando uma pena de 45 anos. Nelson Oliveira dos Santos também já está solto. Atualmente ele está em liberdade condicional por outros crimes, segundo o Tribunal de Justiça do Rio.
  • Marco Aurélio Dias de Alcântara foi condenado a 204 anos de prisão e também foi liberado da prisão após o ocorrido.
  • Marcus Vinicius Emmanuel Borges, ex-Policial Militar – foi condenado a 309 anos de prisão em primeira instância. Recorreu a sentença e, num segundo julgamento, foi condenado a 89 anos. Insatisfeito com o resultado, o Ministério Público pediu um novo julgamento e, em fevereiro de 2003, Emmanuel foi novamente condenado a 300 anos. A defesa de Emmanuel recorreu a um indulto, amparado por um Decreto assinado em 2010, que possibilita a concessão do benefício a condenados por crimes não hediondos, desde que tenham cumprido 15 anos de pena de forma contínua e demonstrado bom comportamento durante o período. No caso de Emmanuel, ele preenchia os requisitos estabelecidos, uma vez que o homicídio qualificado pelo qual foi acusado só foi considerado hediondo em 1994, um ano após a ocorrência da chacina. Após receber o indulto, o Ministério Público estadual decidiu apelar ao Superior Tribunal de Justiça (STJ). Um ano depois, os ministros do STJ suspenderam o benefício, e a Vara de Execuções Penais emitiu um pedido de prisão preventiva contra Emmanuel. Contudo, esse mandado nunca foi cumprido, e desde então, Emmanuel está foragido.

Envolvidos na chacina que não foram condenados:

Arlindo Afonso Lisboa Júnior foi condenado a cumprir uma pena de dois anos de prisão por ter sido encontrado em posse de uma das armas utilizadas no crime.

Por sua vez, Carlos Jorge Liaffa, mesmo tendo sido reconhecido por um sobrevivente e com a perícia comprovando que uma das cápsulas que atingiu uma das vítimas foi disparada pela arma de seu padrasto, não chegou a ser indiciado.

O promotor do caso justificou a prisão de Cláudio Luiz, Cortes e Jurandir, que, no final das contas, foram absolvidos, baseado em uma suposta semelhança física com os outros suspeitos. De acordo com o promotor Piñeiro, “Sexta-feira Treze e Cláudio Luiz eram muito parecidos, eram negros e magros. Alcântara era corpulento, assim como Cortes, e ambos tinham a mesma falha nos dentes da frente. E Jurandir se assemelhava a Cunha”.

Trinta anos da chacina da Candelária

Atualmente, os envolvidos encontram-se em liberdade, o que tem gerado questionamentos e críticas em relação à impunidade e à demora na obtenção de justiça para as vítimas da chacina.

A chacina da Candelária permanece como um triste capítulo da história do Rio de Janeiro e do país, lembrando-nos das profundas questões sociais e de segurança pública que ainda desafiam a sociedade brasileira. A memória das vítimas e a busca por justiça continuam a ecoar mesmo três décadas após o ocorrido.

O monumento com a igreja no fundo

Diante da igreja, encontra-se um modesto monumento em memória à chacina. Composto por uma simples cruz de madeira, nele estão gravados os nomes dos jovens vítimas do trágico evento, acompanhada por uma placa de concreto. Infelizmente, a placa parece ter sido alvo de atos de vandalismo, pois encontra-se gravemente danificada, separada de seu suporte e com a inscrição ilegível, dificultando a leitura da epígrafe que ali estava registrada.

Os nomes dos oito mortos no episódio encontram-se inscritos em uma cruz de madeira, erguida no jardim de frente da Igreja:

 

Investigação e condenados

No decorrer do processo, foram indiciadas sete pessoas no total: o ex-Policial Militar Marcus Vinícius Emmanuel Borges, os Policiais Militares Cláudio dos Santos e Marcelo Cortes, o serralheiro Jurandir Gomes França, Nelson Oliveira dos Santos, Marco Aurélio Dias de Alcântara e Arlindo Afonso Lisboa Júnior.

  • Paulo Roberto de Oliveira, 11 anos
  • Anderson de Oliveira Pereira, 13 anos
  • Marcelo Cândido de Jesus, 14 anos
  • Valdevino Miguel de Almeida, 14 anos
  • “Gambazinho”, 17 anos
  • Leandro Santos da Conceição, 17 anos
  • Paulo José da Silva, 18 anos
  • Marcos Antônio Alves da Silva, 19 anos

Referências culturais

A chacina que ocorreu teve sua história retratada em diferentes formas de mídia, incluindo um episódio do programa Linha Direta da Rede Globo, um flashback no livro “O Imperador da Ursa Maior” escrito por Carlos Eduardo Novaes, o documentário “Ônibus 174” dirigido por José Padilha e o filme “Última Parada 174” dirigido por Bruno Barreto. Todos eles narram os eventos trágicos que envolveram Sandro Barbosa do Nascimento, um sobrevivente do massacre, que anos depois se envolveu em outro episódio marcante ao protagonizar o sequestro do ônibus da linha 174 na mesma cidade. Além disso, uma referência à chacina é encontrada no jogo “Metal Gear Rising: Revengeance”, em uma conversa entre os personagens Kevin e o protagonista Raiden sobre a situação de crianças de rua.

Essa terrível chacina resultou na perda de seis adolescentes e dois adultos, deixando muitos outros feridos. O sobrevivente Sandro Barbosa do Nascimento voltou a ser notícia anos depois ao protagonizar o sequestro do ônibus 174.

Esses acontecimentos trágicos expõem profundas falhas em nosso sistema, destacando a urgência de enfrentar questões como a violência policial, a discriminação racial e as desigualdades sociais que assolam nossa sociedade. A memória das vítimas deve nos incentivar a buscar mudanças significativas, visando um futuro mais justo e humano.

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Adriano Dias

Jornalista militante e fundador da #ComCausa

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