Na tarde chuvosa de 7 de junho de 1990, as ruas enlameadas do bairro Itaipu, em Belford Roxo, testemunharam uma execução que ainda ecoa como ferida aberta na memória da Baixada Fluminense. Irmã Maria Filomena Lopes Filha — a Irmã Filó — foi sequestrada e assassinada por três homens encapuzados, a mando do crime organizado. A freira havia se tornado um símbolo de resistência e fé atuante, liderando mutirões populares que ergueram casas, creche, posto de saúde e esperança em um dos territórios mais negligenciados do estado do Rio de Janeiro.
Sua morte brutal não foi um acidente da violência. Foi uma mensagem. Um crime político-social, no qual se tentou silenciar uma mulher que, com cimento, tijolo e oração, desafiava as ausências históricas do poder público com autogestão popular e ação comunitária direta.
A freira dos pobres
Filó nasceu em 26 de maio de 1946, no município mineiro de São Miguel do Anta. Jovem, ingressou na Congregação das Irmãs Franciscanas da Imaculada Conceição de Maria, de Bonlanden, onde foi formada na espiritualidade da escuta e da ação. Influenciada pela Teologia da Libertação e pela memória de mártires latino-americanos como Dom Oscar Romero, foi enviada para a Diocese de Nova Iguaçu no fim dos anos 1980, a convite de Dom Adriano Hypólito, bispo que marcou época por sua defesa intransigente dos pobres.
Ao chegar à Baixada, encontrou um cenário de desigualdade extrema, exclusão urbana e presença crescente de organizações criminosas. Lecionando e coordenando o curso técnico de Eletromecânica no Instituto de Educação Santo Antônio (IESA), em Nova Iguaçu, Filó começou a mobilizar seus alunos e a comunidade em torno de uma causa: a reconstrução dos lares destruídos pela enchente de 1986, que devastou áreas inteiras nas margens do Rio Botas.
Movida pelo lema da Campanha da Fraternidade daquele ano — “Terra de Deus, terra de irmãos” —, ela fundou um mutirão permanente no bairro Itaipu, em Belford Roxo. Ao longo de quatro anos, mais de uma centena de casas foram erguidas, junto com uma creche, um posto de saúde, salão comunitário e uma capela, com trabalho braçal voluntário e doações obtidas com a força de sua articulação. A fé que Filó professava não cabia apenas na liturgia — ela habitava os canteiros de obras. Ela mesma carregava cimento, assentava tijolos e cavava valas ao lado dos moradores.
Uma ameaça ao poder do medo
A força simbólica e concreta da presença de Filó logo começou a incomodar os que dominavam o território com armas, extorsões e medo. Nos últimos meses de sua vida, ela passou a receber ameaças. Em depoimentos preservados pela Diocese de Nova Iguaçu, há registros de que traficantes exigiram que ela abandonasse o projeto. A frase ouvida certa vez por ela — “A obra é de Deus, mas a rua é nossa” — tornou-se um marco de sua trajetória. E sua resposta foi à altura: “Quem carrega tijolo não tem mão livre para medo.”
Na tarde de 7 de junho de 1990, saiu do IESA dirigindo um Ford Del Rey carregado de cimento, com a promessa de voltar às 17h30 para a missa. Nunca retornou. Moradores viram homens encapuzados a rendendo no loteamento. Horas depois, seu corpo foi encontrado em um terreno baldio, executado com um tiro na nuca. No porta-luvas, um bilhete inacabado endereçado à família: “Vocação é viver, tornando a vida mais bela.”
Justiça ausente, memória presente
O inquérito policial foi rapidamente arquivado. Nenhum suspeito foi identificado. Nenhuma testemunha foi ouvida com rigor. Nenhuma denúncia foi apresentada. O crime desapareceu do noticiário como desaparecem tantos outros na Baixada: engolido pela impunidade. O caso de Irmã Filó é parte daquilo que estudiosos chamam de “banalização da morte seletiva”, marcada por classe, território e abandono estrutural.
Mas sua memória resistiu. Desde 1991, todos os 7 de junho, romarias populares percorrem o trajeto entre a capela do conjunto e a cruz de madeira que marca o local de sua execução. A homenagem reúne ex-alunos, religiosas, moradores, lideranças populares, movimentos sociais e a organização ComCausa Defesa da Vida, que mantém viva sua história em campanhas por justiça, habitação e dignidade nos territórios periféricos da Baixada.
Em 2003, a Prefeitura de Belford Roxo batizou a escola construída no mesmo terreno onde ela foi assassinada como Escola Municipal Irmã Maria Filomena Lopes Filha. E, em 2022, uma imagem sua foi levada pelo bispo Dom Gilson Andrade ao Papa Francisco, pedindo a abertura formal do processo de reconhecimento de seu martírio. Para a Igreja, mártir é quem morre por amor aos pobres. Para o povo, mártir é quem viveu por eles até o fim.
Quando o Estado falha, a fé se organiza
A execução de Irmã Filó, assim como os assassinatos de Marielle Franco, Chico Mendes e Irmã Dorothy Stang, não é apenas um crime: é um retrato cruel daquilo que o Brasil falha em proteger — quem ousa cuidar dos vulneráveis. O silêncio das instituições, 35 anos depois, é uma segunda violência. A omissão oficial confirma que, quando o crime manda e o Estado se cala, o povo é deixado à própria sorte.
Mas o povo não esquece. A Baixada não esquece. O mutirão iniciado por Filó não terminou com sua morte. Ele continua vivo em cada casa erguida com solidariedade, em cada jovem que se forma na escola com seu nome, em cada comunidade que resiste mesmo quando tudo parece ruir. Filó vive no cimento das paredes, na lembrança dos vizinhos e na certeza de que a justiça popular — ainda que invisível para o Judiciário — continua sendo construída, dia após dia, com fé, luta e memória.
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