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Pela cura dos canhotos

Os canhotos historicamente sempre foram marginalizados pela sociedade. Houve períodos em que sofreram agressões físicas para corrigir seu “mau hábito”. Foram acusados de possessão demoníaca e até de pacto com o diabo.

Muitas vezes, os canhotos eram humilhados publicamente, fazendo com que sua terrível anomalia se tornasse objeto de escárnio pela comunidade. Algumas pessoas foram até parar nas fogueiras da Inquisição simplesmente por serem canhotas.

Existem mais de 100 referências na Bíblia em que o lado direito é considerado superior ao esquerdo. Além disso, as poucas vezes em que a mão esquerda é mencionada no livro sagrado dos cristãos, é de maneira negativa.

No latim, a palavra “sinistro”, que descreve aquele que prefere usar a mão esquerda, é também associada a algo funesto ou agourento, aquele que pressagia a morte ou traz consigo desventuras e desgraças.

Ser canhoto já foi considerado egodistonia, uma patologia em que a pessoa sofre devido à falta de sintonia entre o que o corpo e a mente impõem, contradizendo os padrões culturais, sociais e até religiosos da sociedade.

Apesar de tudo isso, cerca de 10% da humanidade persiste em ser canhota, desafiando as bases científicas de antropólogos, neurologistas e até geneticistas. Além dos canhotos e canhotas assumidos, existem os ambidestros, que conseguem habilmente usar os dois lados. No entanto, quando identificados, eles são frequentemente lembrados pelo seu lado “sinistro”, e não pela sua “destreza”.

Eu tenho um filho canhoto de 7 anos de idade. Fico imaginando o que ele poderia ter enfrentado se tivesse nascido em outra época, simplesmente por ter o cérebro controlando de maneira diferente uma função motora em comparação com a maioria das pessoas. Graças a Deus, ele nasceu em tempos diferentes.

Nada é mais importante para mim do que ver meu filho feliz. Ele pode ser canhoto ou não, e eu nunca admitiria que ele passasse por qualquer tipo de humilhação, fosse classificado como anormal pela sociedade, fosse constrangido ou sofresse violência por ser canhoto. Eu sempre o amarei, independentemente de escrever com a mão direita ou com a mão esquerda.

Portanto, todas as pessoas que têm filhos canhotos devem entender o quão absurdo, tanto moral quanto legalmente, é impor a “cura” dos canhotos. Não se cura o que não é uma doença. Não se corrige algo que é intrínseco ao indivíduo.

Na minha opinião, aqueles que desejam “curar” os canhotos refletem seu próprio sofrimento. Incapazes de lidar com sua própria angústia interna, tentam infligir nas outras pessoas a mesma ou pior amargura que carregam em seus corações vazios.

É claro que também existem aqueles que, por serem completamente vazios de conteúdo, se juntam a uma multidão de ignorantes na busca pela “cura” dos canhotos, apenas para se tornarem brevemente visíveis em alguma rede social na internet.

No entanto, os piores são aqueles que calculam o quanto podem ganhar em seguidores, votos e dinheiro ao impor a “cura” dos canhotos.

Por fim, quanto ao juiz medieval inquisitório Waldemar Cláudio de Carvalho, da 14ª Vara do Distrito Federal, que concedeu uma liminar que, na prática, determina que o Conselho Federal de Psicologia (CFP) altere a interpretação de suas normas de forma a não impedir os profissionais “de promoverem estudos ou atendimento profissional, de forma reservada, pertinente à (re)orientação sexual, garantindo-lhes, assim, a plena liberdade científica acerca da matéria, sem qualquer censura ou necessidade de licença prévia”, o que posso afirmar é que continuarei amando meu filho por ser canhoto. Aliás, hoje em dia, até se atribui uma maior inteligência às pessoas que usam mais a mão esquerda. Também não vou tolerar, em momento algum, que ele sofra qualquer tipo de tentativa de “cura”, seja por ser canhoto ou, no futuro, por sua orientação afetiva.

| Publicado no Jornal de Hoje em 03 de outubro de 2017

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Adriano Dias

Jornalista militante e fundador da #ComCausa

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