O chamado Golpe de 1964, também referido por diversos estudiosos e instituições como Golpe Civil-Militar de 1964, consistiu em uma ruptura abrupta da ordem constitucional brasileira, perpetrada a partir de uma aliança estratégica entre setores das Forças Armadas, do grande empresariado nacional e estrangeiro, de parte significativa do judiciário, da grande imprensa, de setores do clero conservador católico e, sobretudo, com articulação direta da diplomacia e dos serviços de inteligência dos Estados Unidos da América.
A deposição do então presidente constitucional João Belchior Marques Goulart, também conhecido como Jango, foi o desfecho de um longo processo de desestabilização política que se arrastava desde a crise que sucedeu a renúncia de Jânio Quadros, em agosto de 1961. Ao contrário da retórica oficial sustentada pelo regime instaurado posteriormente, não se tratou de uma “revolução redentora”, mas sim de um golpe de Estado, com o objetivo de deter o avanço das reformas sociais que vinham sendo gestadas e discutidas no interior do governo e da sociedade civil brasileira.
Antecedentes históricos: do populismo à polarização ideológica
O golpe de 1964 não ocorreu de forma abrupta, mas foi precedido por uma série de fatores históricos, econômicos e sociais que remontam, no mínimo, à década de 1930, com a ascensão de Getúlio Vargas ao poder e a instauração de um Estado fortemente intervencionista e nacional-desenvolvimentista. O legado varguista, especialmente a legislação trabalhista, o fortalecimento dos sindicatos e a ampliação do papel do Estado como indutor do desenvolvimento, sobreviveu à sua queda em 1945 e foi retomado, com nuances próprias, nos governos seguintes, inclusive nos de Juscelino Kubitschek (1956-1961) e do próprio João Goulart.
A posse de Goulart foi condicionada, em 1961, à instalação de um regime parlamentarista, medida que visava limitar os poderes presidenciais e conter as pressões contrárias de setores militares e conservadores. Apenas em janeiro de 1963, após plebiscito nacional, o presidencialismo foi restaurado, permitindo a Jango assumir plenamente as prerrogativas do cargo. Seu governo, entretanto, desenvolveu-se sob intensa polarização ideológica, agravada pelo contexto internacional da Guerra Fria, marcado pela paranoia anticomunista fomentada pela política externa dos Estados Unidos, sob a égide da Doutrina de Segurança Nacional.
As Reformas de Base e a ameaça à ordem oligárquica
Um dos pilares do governo João Goulart foi a formulação e tentativa de implementação das chamadas Reformas de Base, que visavam modificar profundamente a estrutura socioeconômica brasileira. Entre essas reformas destacavam-se:
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A reforma agrária, com o objetivo de promover a distribuição de terras improdutivas;
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A reforma bancária, para ampliar o controle estatal sobre o sistema financeiro;
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A reforma tributária, com progressividade fiscal e justiça distributiva;
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A reforma educacional, para erradicar o analfabetismo e democratizar o acesso à escola;
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A reforma urbana, com regulação do uso da terra e das habitações;
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E a regulamentação da Lei de Remessa de Lucros (Lei 4.131/1962), que limitava em 10% a transferência de lucros das empresas estrangeiras para o exterior.
Essas propostas, embora respondendo a anseios de amplas parcelas da população, especialmente os trabalhadores urbanos e rurais, foram consideradas ameaçadoras por segmentos dominantes da economia, como os latifundiários, os industriais conservadores, os grupos financeiros internacionais e multinacionais estrangeiras, especialmente norte-americanas.
A intervenção dos Estados Unidos: financiamento e Operação Brother Sam
A participação dos Estados Unidos no golpe de 1964 está amplamente documentada em pesquisas históricas e em documentos desclassificados pelo governo norte-americano nas últimas décadas. O país operou, por meio da Agência Central de Inteligência (CIA), uma extensa rede de financiamento a partidos conservadores, parlamentares, campanhas eleitorais e organizações civis de fachada, como o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD).
Nas eleições de 1962, o IBAD financiou, de forma clandestina e ilegal, mais de 800 candidatos conservadores, no intuito de criar um Congresso refratário às propostas de Jango. O IPES, por sua vez, organizava congressos, seminários, produções audiovisuais e publicações que disseminavam o discurso do “perigo vermelho”, apresentando o governo como uma ameaça à “democracia cristã”.
Além do financiamento ideológico e institucional, os EUA prepararam a Operação Brother Sam, um plano militar que previa o envio de uma frota naval com apoio logístico e armamentista às tropas golpistas, caso houvesse resistência. O plano foi conduzido pelo embaixador Lincoln Gordon e pelo adido militar Vernon Walters, em articulação direta com o general Humberto Castello Branco, à época chefe do Estado-Maior do Exército.
A deflagração do golpe: de Mourão Filho à edição do AI-1
A ruptura definitiva ocorreu na noite de 31 de março de 1964, quando o general Olímpio Mourão Filho, comandante da 4ª Região Militar, em Juiz de Fora (MG), antecipou-se ao comando militar e deslocou tropas em direção ao Rio de Janeiro. Embora essa ação não estivesse plenamente coordenada com o núcleo central do Exército, a adesão rápida das demais regiões militares selou o destino de Jango.
A inércia do presidente, que se recusou a autorizar resistência armada, a falta de apoio efetivo das Forças Armadas e a ausência de uma base civil de sustentação robusta, levaram-no a abandonar o país rumo ao Uruguai. Em 2 de abril, o presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, declarou a vacância da presidência – um ato ilegal e inconstitucional –, oficializando a usurpação do poder.
Em 9 de abril de 1964, foi emitido o Ato Institucional nº 1 (AI-1), instrumento que conferia à junta militar poderes excepcionais, incluindo a cassação de mandatos, a suspensão de direitos políticos e a intervenção nos estados. O AI-1 afirmava que:
“A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte (…). Esta é a forma mais expressiva e mais radical do Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, como Poder Constituinte, se legitima por si mesma.”
Dois dias depois, em 11 de abril, o Congresso Nacional elegeu, de forma indireta, o marechal Humberto de Alencar Castello Branco como presidente da República, inaugurando formalmente a Ditadura Militar Brasileira.
Consolidação da repressão e os anos de chumbo
Nos anos seguintes, o regime aprofundou seus mecanismos de repressão, com a promulgação de novos Atos Institucionais, culminando no AI-5, de 1968, que extinguiu liberdades civis, deu poder absoluto ao Executivo, permitiu a censura prévia e institucionalizou a tortura. Os dados do período são alarmantes:
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Mais de 50 mil prisões políticas nos primeiros anos do regime;
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10 mil brasileiros exilados;
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434 pessoas oficialmente reconhecidas como mortas ou desaparecidas políticas (dados da Comissão Nacional da Verdade);
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Aproximadamente 6.592 militares democráticos punidos;
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Intervenção em centenas de sindicatos, federações e confederações trabalhistas;
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Incêndio das sedes da UNE e da UBES e perseguição aos seus líderes;
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Censura a mais de 2 mil produtos culturais, entre livros, músicas, filmes, peças, jornais, revistas e programas de televisão.
Militarização do Estado e vigilância da sociedade
O Estado foi ocupado por mais de 18 mil militares em cargos da administração pública, empresas estatais e autarquias. O Serviço Nacional de Informações (SNI) organizou um verdadeiro Estado policial, com cerca de 300 mil informantes e 1 milhão de colaboradores, fichando mais de 250 mil cidadãos por motivos políticos, ideológicos ou sindicais.
A máquina repressiva funcionava a partir de órgãos como o DOI-CODI, o DOPS, o CENIMAR e a OBAN, que se transformaram em centros de tortura institucionalizados. Casos de execuções clandestinas, desaparecimentos forçados, incineração de corpos e desaparecimento de cadáveres em alto-mar são documentados em obras como o “Brasil: Nunca Mais” (1985) e os relatórios da CNV.
Um golpe contra a democracia e o povo brasileiro
O Golpe de 1964 não foi um evento isolado ou fruto de um descontrole momentâneo. Foi o resultado de uma aliança reacionária transnacional que uniu militares, empresários, políticos conservadores e potências estrangeiras para conter as transformações sociais que ameaçavam os privilégios seculares das elites brasileiras. A ditadura imposta após o golpe não apenas interrompeu o ciclo democrático, como impôs ao país duas décadas de medo, silêncio, dor e injustiça.