A fome o homem bicho

Outro dia, voltando de uma aula que dei em Santa Cruz, passei em frente a um condomínio razoavelmente bonito. Havia vários carros estacionados dentro dele, algumas árvores e algumas pessoas arrumadas nele – a parte boa do engarrafamento que eu pego para sair do bairro carioca e pegar a Avenida Brasil faz com que eu fique observando tudo ao redor para passar o tempo. Ao lado do condomínio, existiam algumas caçambas de lixos e foi justamente ali que o jogo virou dentro da minha cabeça. Assisti a uma cena que embrulhou meu estômago e me fez lembrar de um poema do Manuel Bandeira.

Bem, vamos ao poema do Bandeira primeiro, depois volto a falar da cena (esses cortes de cena sempre me agradam nos filmes aos quais assisto). O texto se chama O bicho, publicado originalmente no livro Belo belo (1948) e republicado em tantas outras obras.

O bicho

Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio,
Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão.
Não era um gato.
Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.

E o autor, lá em 1948, enquanto o mundo tentava se reconstruir após duas Guerras Mundiais, descreveu exatamente a cena que vislumbrei naquele instante. Havia uma família inteira (dois adultos, três adolescentes e uma criança) revirando as caçambas de lixo que ficavam na rua ao lado da entrada do condomínio razoavelmente bonito. A mais nova do grupo comia algo que estava dentro de sacola de lixo. Uma situação que me revirou o estômago e senti o peso da impotência batendo em meu colo com a mesma tonelada do Titanic e a cena, até agora, não saiu da cabeça.
Peço-lhe, leitora ou leitor, desculpas pela cena, mas algumas coisas precisam ser ditas a partir desta cena.

O Brasil, durante muitos e muitos anos, esteve no mapa e só saiu após um período de não menos que quinze anos de políticas públicas que deram a possibilidade das famílias em maior vulnerabilidade ter o poder de se alimentar. Foram longos os anos e muita luta ocorreu para o Brasil sair de uma taxa de 14,8% (1992) da população que sentia fome para o número de 1,7% em 2014. O número ainda é alto, se tomarmos por base que este último índice dá o total de 3,4 milhões de brasileiros sentindo fome. Conseguimos sair do Mapa da Fome da ONU e isso foi uma vitória indescritível.

Agora, voltemos novamente para a família que estava revirando o lixo no bairro de Santa Cruz. Eram seis ao todo, mas esses seis, hoje, fazem parte de um total de 19 milhões de pessoas que estão passando fome no Brasil de 2021. É um dado que me chocou, sabia que a insegurança alimentar estava atingindo a nossa população, mas nunca imaginei que o número chegaria a esse tamanho. Só para você ter uma ideia, 19 milhões é um terço de toda população da Itália e Inglaterra, ou, se preferir, quase o dobro dos habitantes de Bélgica e Portugal (ou a população dos dois juntos). Não é assustador, camarada?

A pandemia contribuiu para isso? Claro, não podemos ignorar esse fato, mas não podemos ignorar também as políticas públicas neoliberais que foram implementadas pelo Temer e que tiveram continuidade (e mais perversidade) pelo capitão Jair Bolsonaro (me recuso a usar o Messias por respeito ao grande líder bíblico). O presidente atual e o seu posto Ipiranga em nenhum momento olhou para a classe mais vulnerável da sociedade, com os preços dos alimentos cada vez mais caro, o brasileiro voltou a roer osso (infelizmente, essa parte é literal). O capitão está preocupado com os filhos e com a reeleição, enquanto a população chora ao lembrar de um passado não tão distante, quando era possível viver.

O que podemos fazer? Lutar. Lutar para que políticas públicas sejam realizadas, lutar para que os cargos eletivos sejam ocupados por pessoas que saibam a importante de pensar o Brasil para além dos empresários, lutar para que jargões não fiquem sendo a grande arma de nossa política, lutar para que a comida não seja trocada por objetos bélicos. A luta será grande e longa, mas sabemos o caminho e é possível o Brasil voltar a dar certo, só não podemos perder a esperança de dias melhores e acreditar que tudo o que foi feito é irreversível, pois não é.

Muitos diziam que as políticas públicas que foram implementadas e que retiraram o Brasil da fome eram uma forma de dar o peixe e não de ensinar a pescar. Bem, agora não temos nenhum dos dois, né? Visto que somos mais de 14 milhões de desempregados (número que pode ser muito maior) e também temos 19 milhões com fome.

Espero que aquela família, um dia, consiga se alimentar sem precisar revirar o lixo de nenhum condomínio razoavelmente bonito.

Até próxima.

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