Carta Pastoral transcrita por A.L.M
Adriano Hypolito, OFM
Prezados diocesanos:
O enfoque desta mensagem de Páscoa é pastoral: como cristão, como sacerdote e como bispo diocesano, me ocupo de problemas fundamentais de nossa Baixada Fluminense, desta área singular onde nos colocou a Divina Providência para o serviço da comunidade dos homens. Fala o cristão: não fala nem o economista, nem o sociólogo, nem o político, nem o psicólogo de massas. Sim, fala apenas e sobretudo um cidadão brasileiro que é cristão e bispo. Fala o irmão que sente os problemas de todos os irmãos da Baixada, que sente a insegurança social de nossa região. Fala quem, apesar de tudo, ainda confia que, com a graça de Jesus Cristo ressuscitado, vencedor do pecado e da morte, é possível aos homens de boa vontade enfrentar a problemática da Baixada, para encontrar algumas soluções. Desde que tenhamos a humildade da verdade e a sinceridade da procura em comum.
Há muitos problemas agudos na Baixada Fluminense. Deixemos de lado explosão demográfica e instabilidade, transportes e pavimentação, luz e água, saneamento e urbanização, comércio e industrialização, cultura e práticas religiosas. E focalizemos alguns que, sendo sempre importantes, parecem ser para nós prioritários ou imediatos, além de fundamentais, para a solução das outras dificuldades. Creio que são os seguintes:
- Educação
A educação é falha na Baixada Fluminense, como em todo o Brasil, mas aqui aparece mais falha, mais deficiente, em vista da concentração demográfica, da proximidade com o centro de cultura que é o Rio de Janeiro, da industrialização explosiva, do número de crianças que, para ajudarem o salário dos pais, deixam a escola pelo biscate. Faltam salas de aula, faltam escolas convenientemente distribuídas pela área. As escolas são mal instaladas e muitas vezes mal conservadas. As professoras são desestimuladas, pois grandes números delas são apenas contratadas, sem direitos, a não ser o salário que recebem periodicamente. Por que as professoras contratadas, algumas com longos anos de serviço, não recebem efetivação? Por que ficam fora da legislação social do país? Por que seu ordenado é retido? Por que as professoras, na medida do possível, não são lotadas na área de sua residência? Por que não se fomentam as escolas particulares, com uma legislação realista e adequada à nossa situação, principalmente se considerarmos que o governo, nem no Brasil nem nos outros países, não está em condições de assumir todo ônus da educação? Por que então os entraves e arbitrariedades que uma fiscalização alheia à nossa situação, ou exorbitante, ou desonesta, põe à atuação das escolas particulares? Um exemplo concreto: quase todas as escolinhas, gratuitas, das paróquias de nossa diocese se fecharam, em vista das dificuldades e exigências descabidas de um município ou estado que confessadamente não podem prescindir da colaboração de entidades particulares. Em nome da consciência cristã e da liberdade do Evangelho, em nome também da educação que a constituição do país e do estado garantem, pedimos que se dê mais condições de funcionamento aos colégios e escolas particulares (o que evidentemente significa uma legislação realista e o dever também de vigilância); que a educação seja de fato uma prioridade no orçamento do estado e dos municípios, bem como no planejamento de nossa região; que as professoras sejam digna e pontualmente remuneradas; que o estado deixe de reter o salário das professoras contratadas. Do investimento feito em educação depende o crescimento orgânico de nosso país, inclusive também de uma economia sólida e sadia.
- Saúde:
O setor saúde devia merecer mais atenção dos poderes públicos. São poucos os hospitais, postos de saúde, maternidades, ambulatórios etc, de nossa região. O caso de Nova Iguaçu que, sendo o 8° ou 9° município do país em população, tem apenas um hospital (este mesmo de uma associação de caridade) para atender o grande público, de modo particular os pobres e indigentes, sempre ameaçado de fechar à falta de recursos, é uma situação clamorosa que deveria levar os responsáveis a uma reflexão séria sobre as deficiências de nossa Baixada Fluminense. Os médicos que aqui trabalham sabem contar casos dolorosos e freqüentes, sem que se tomem as providências urgentes e necessárias para sanar os nossos males. Não se diga que a rede hospitalar da Guanabara atende a Baixada Fluminense. Como é que uma população de humildes trabalhadores pode pagar transporte especial para o Rio em casos urgentes? Apesar da propaganda otimista, o INPS e outras entidades previdenciárias não atendem os seus associados com a solicitude, com a presteza, com a profundidade que os casos requerem, para não falar da massa de pessoas humildes que não participam das vantagens das leis sociais. As filas que começam já de madrugada, o atendimento limitado e superficial muitas vezes, o encaminhamento tardio, as receitas que não podem ser aviadas por falta de recursos — tudo se repete com tal freqüência que se torna impossível desculpar as falhas. Todo o sistema de atendimento, toda a estrutura da previdência, talvez todos os quadros humanos tenham de ser revisados, para achar-se a fórmula correta. Se a orientação do governo federal, como se tem proclamado tantas vezes, é a valorização da pessoa humana, custa compreender que os nossos irmãos das classes humildes sejam ludibriados, maltratados por institutos que foram criados e são mantidos graças às contribuições de empregados e empregadores, exatamente para prestar auxilio (de justiça, não de caridade) na doença, na velhice, na invalidez. Nada justifica as filas enormes à porta de postos médicos, à porta de bancos, para um homem receber o que é seu por direito e justiça. A consciência cristã exige que seja reformado o sistema de atendimento a nossos irmãos mais pobres. É impossível aceitar que se brinque com a vida, com a sorte dos que, na sua humildade, no seu trabalho sofrido, na sua ordeiridade exemplar, constroem o Brasil do presente.
- Segurança
Um mínimo de segurança, eis o que a sensatez exige para o progresso e para o desenvolvimento. Em nossa Baixada chegamos a uma situação de insegurança que desencoraja toda iniciativa e atuação honestas. Deveremos baixar todos ao nível dos marginais para podermos viver aqui? Deveremos todos empregar os mesmos recursos para sobreviver? Os responsáveis podem tentar explicações técnicas ou sociológicas — geralmente superficiais e insustentáveis — quantas quiserem. Todo mundo vê e diz à boca pequena — inclusive pessoas lotadas na própria polícia, ainda que sob reservas e ameaças de desmentidos — que a insegurança social da Baixada Fluminense é em grande parte fruto da atuação de uma força policial mal recrutada, mal preparada, mal remunerada. Os jornais relatam fatos de policiais coniventes com marginais. Basta pensar nas peripécias dos processos feitos nos últimos meses contra os membros dos chamados Esquadrões da Morte que conseguiram inclusive repercussão no estrangeiro. Que forças poderosas invalidam e destroem a decisão dos homens honestos de acabarem a praga social de uma polícia corrupta e mancomunada com os criminosos? No Estado do Rio, ao contrário de muitos outros estados da Federação, os delegados de polícia são bacharéis: onde fica então o cultivo do direito, da justiça que deveria caracterizar a sua atuação em defesa da ordem pública e do bem comum? Os jornais noticiam constantemente fatos que depõem contra o sistema de segurança de nossos municípios. Não se nega que existam bons policiais, sacrificados e conscienciosos. Mas é também inegável, infelizmente, que o povo tem medo da ação arbitrária da polícia, das violências, dos maus tratos de homens primários que pertencem aos quadros policiais, mas poderiam estar também participando de gangs de marginais; é também inegável, infelizmente, que o povo não confia na honestidade da polícia, aceitando sem dificuldade que os policiais são aliados dos criminosos. A consciência cristã exige que seja modificada essa imagem da polícia, que todos tenhamos nos policiais, bem recrutados, bem formados, bem remunerados, bem acompanhados por seus superiores, os cidadãos corajosos, honestos, justos, prestimosos que garantem a segurança pública, que merecem a nossa confiança e gratidão, que combatem o crime com armas de justiça, de direito, de moderação, sem nunca se rebaixarem à miséria de criminosos bárbaros. Aqui também se poderia pensar no que acontece nas cadeias públicas, graças a uma estrutura desumana e anticristã de promiscuidade, de torturas, de suborno. Onde está o nosso cristianismo? Onde está o nosso sentimento de humanidade?
- Política
A história dos costumes políticos da Baixada Fluminense ainda não foi escrita. Mas tem sido vivida há vários decênios. E não é uma história brilhante. Nem tampouco exemplar. Os meios de comunicação encarregam-se de projetar para o Brasil inteiro e para outros países do mundo a imagem do político da Baixada que não nos faz honra, infelizmente, ainda que devamos ressaltar as exceções aqui como noutros setores da nossa vida social. Todas as comunidades de nossa região sofrem a inépcia ou o despreparo ou a desonestidade dos que se conseguem impor à decisão dos eleitores. Temos exceções, repito. Mas a imagem de nossos políticos é marcada pela mediocridade, pela incapacidade, pelo puxa-saquismo, pelo primarismo dos muitos que — será castigo de Deus, pondo-nos à prova para aprendermos a refletir, através do sofrimento, sobre a nossa responsabilidade cristã? — fazem política em nosso meio. Vícios inveterados, ambições mesquinhas, rivalidades menos do que provincianas, visão curta da realidade, atitudes demagógicas, despreparo para os cargos e funções, interesses bitolados: sobem e descem os políticos, vão e vêm as eleições, aparecem e desaparecem os grupos políticos, e nada se modifica definitivamente na paisagem destas formidáveis comunidades da Baixada Fluminense que bem mereciam melhor sorte. A falta de influência de nossa região é notável, a ponto de podermos indagar com curiosidade: Que é que a União faz pela Baixada? Que é que faz o Estado? Que é que fazem de grande e de útil os nossos municípios? Com exceção talvez do saneamento da Baixada, obra meritória que foi o ponto de partida para o crescimento ainda que desorganizado de nossa região, que planejamento, que estudo sério, que execução eficiente pode ser apresentada como sinal de interesse pelos nossos problemas? Quando é que as autoridades procuram atender os postulados — modestos, ordeiros, justos — dessa região excepcional da paisagem brasileira e deste povo trabalhador, sacrificado, que apesar de tudo constrói o Brasil, sem ódio nem revolta? Não conheço no Brasil população que exceda em coragem, em operosidade, em resistência, em força de vontade esta população heróica da Baixada, recrutada de todos os sofrimentos espalhados pelo Brasil afora. A consciência cristã exige que os nossos políticos assumam sua responsabilidade de promover o bem comum — pois para isto se faz Política, para isto são eleitos os políticos; que ultrapassem a mentalidade provinciana e primária de interesses egoístas, procurando conhecer a realidade de nosso povo e os princípios básicos de uma política genuína; que enfrentem os problemas com seriedade e humildade, na vontade firme de acertar; que esqueçam as divergências partidárias, quase sempre mesquinhas e desestimulantes, quando se trata de promover o bem de nossa Baixada Fluminense. Somente a conjugação de forças, com uma visão honesta do bem comum, pode modificar para melhor a imagem de nossa região, a imagem interna, sobretudo.
- Elites
Aqui se tornaria necessário um apelo ao pequeno grupo de elite que sente os problemas e misérias da Baixada Fluminense, a deformação de nossa imagem, os aspectos negativos de nossa realidade social. E não sente apenas: gostaria de corrigir a situação. Aqui se impõe a conscientização desta verdadeira elite, para enfrentar a situação e os aproveitadores da situação, assumindo entre outras a sua responsabilidade na política e na vida pública. Todos sabemos que o povo da Baixada é um povo bom, ordeiro, ativo, sofredor, com uma reserva inesgotável de paciência, de otimismo e de energia. O povo é admirável. Daí porque as elites responsáveis encontrarão colaboração decidida e grata em nosso meio. Não nos encontramos em situação irremediável. Ainda podemos contar com muita gente boa que aprovará as medidas de saneamento moral e com elas haverá de colaborar. O que nos falta é unirmos nossas forças para o bem de nosso povo. Que tarefa simpática, embora difícil, neste ano em que o Brasil comemora 150 anos de sua independência!
Os aspectos negativos que apresento lealmente à consideração de todos os homens de boa vontade, de todos os que amam verdadeiramente o Brasil, o Estado do Rio e a Baixada Fluminense, esses aspectos, de todos nós conhecidos, desafiam nosso cristianismo. Se somos cristãos. Se aceitamos como dado fundamental do cristianismo a mensagem salvífica da Páscoa: Cristo ressuscitou. A mensagem de Páscoa é mensagem realista de otimismo, de confiança, de co-responsabilidade. Com a graça de Deus que elevou Cristo como príncipe e salvador para dar-nos ocasião de arrependimento, de revisão, de perdão de nossos pecados (cf. At 5,31) conseguiremos, em trabalho sério e honesto, melhorar as misérias que afeiam a imagem da Baixada Fluminense. Serão achadas soluções se todos nós, que temos responsabilidade, nos juntarmos para refletir. Tenho certeza de que a maldade não será tanta que paralise nosso esforço, nem tão forte a influência dos maus que elimine a influência de cristãos conscientes de sua missão. Para tanto, desejo convocar através desta mensagem de Páscoa, todos os homens responsáveis de nossa área, todos os homens de boa vontade, cristãos ou não, todos os que, numa convivência diária com os problemas de nossa comunidade, desejam apressar o dia de nossa libertação. Sim, estou certo de que acharemos soluções a curto, a médio e a longo prazo, conforme os problemas, desde que os enfrentemos com humildade, seriedade e vontade de acertar; desde que nos unamos em espírito de grandeza interior que corresponda à grandeza crescente de nossas comunidades; desde que saibamos optar pelo prioritário, com sacrifício da fachada, do brilhante, do demagógico. Aos que me lêem ou escutam peço: reflitam sobre o que lhes digo em espírito de solidariedade cristã, num desejo imenso de servir o nosso bom povo, numa convicção amadurecida de nossas responsabilidades, numa visão compreensiva e objetiva dos fatos sociais e, sobretudo, a partir da mensagem de Cristo Ressuscitado, como Paulo a resume de maneira feliz: “Então vocês não sabem que todos nós que fomos batizados em Jesus Cristo fomos batizados na sua morte? Fomos sepultados com ele na sua morte pelo batismo, para que, como Cristo ressurgiu dos mortos pela glória do Pai, assim também nós vivamos uma vida nova” (Rom 6,3-4). Com os votos de Feliz Páscoa, eis o que tinha a dizer-lhes, meu prezados diocesanos. Seu irmão.
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