Por trás da máscara: refletindo sobre a pedofilia e a castração química

Castração Química - Vacina

Por: Mahanna Vieira da Silva Sá e Renata Santos Atayde – Bacharelandas em Psicologia pela
Universidade Estácio de Sá (Unidade de Nova Iguaçu).

A imagem que se constrói de pedófilos e abusadores é, muitas vezes, a de seres monstruosos e animalescos, totalmente separados da humanidade, desprovidos de qualquer resquício de entendimento ou racionalidade. Essa visão, no entanto, nos distancia de uma verdade dolorosa: abusadores não são criaturas irreais ou pesadelos materializados — são humanos e, às vezes, estão muito mais próximos de nós do que esperamos, como um vizinho, um parente próximo ou até mesmo um amigo da família. Essa proximidade desconcertante é o que torna o abuso sexual ainda mais devastador.

Eles não precisam dar sinais de uma natureza violenta ou perversa. Ao contrário, grande parte dos abusadores pode ser vista como cidadãos exemplares, reforçando a crença de que “ele(a) jamais faria algo assim”. Cria-se toda uma estrutura ao redor do indivíduo para minimizar as chances de serem descobertos e, até mesmo, protegê-los caso suspeitas ou acusações surjam.

Entre 2015 e 2021, foram notificados mais de 200.000 casos de violência sexual contra crianças e adolescentes no Brasil. Em 2021, o número de notificações foi o maior registrado ao longo do período analisado, totalizando 35.196 casos. A residência das vítimas foi o local de ocorrência em 70,9% dos casos de violência sexual contra crianças e adolescentes.

Ao aceitar que abusadores podem estar mais próximos do que imaginamos, somos forçados a encarar e questionar as preconcepções que construímos ao redor de um crime tão hediondo. O objetivo deste texto não é apenas discutir as motivações e os perfis desses indivíduos, mas também desmontar a ilusão de que o abuso sexual é cometido apenas por figuras monstruosas. Na verdade, ele pode ser praticado por pessoas comuns que convivem conosco diariamente, camufladas pela rotina.

Além disso, será discutida a ideia da castração química como método para prevenir futuros casos de estupro de vulnerável e punir aqueles condenados judicialmente por esse crime. Serão explicados o que é esse procedimento, como ele é realizado e se essa é, de fato, a solução ideal para lidar com um comportamento tão perverso.

Além do desejo: perfis dos abusadores sexuais

Deste modo, chegamos à questão: o que motiva abusadores? A resposta não é simples. Abusadores não compartilham um único perfil, mas suas motivações podem ser categorizadas. A ideia de que essas pessoas são movidas apenas por desejo sexual é uma percepção limitada de uma realidade mais complexa. Para muitos, o abuso não é sobre satisfazer um desejo sexual avassalador — é sobre poder, dominação e a humilhação da vítima.

Para o predador sádico, a violência sexual é utilizada como um método de tortura. Não se trata de um desejo sexual exacerbado, mas de uma ferramenta para exercer poder e causar dor. A gratificação parte de um desejo de humilhar e machucar a vítima, demonstrando superioridade sobre ela. Nesse caso, o sofrimento da vítima não é um subproduto do estupro, mas sim o objetivo final. Um aspecto marcante desse perfil é sua habilidade de manipulação. Antes do abuso, o predador constrói uma narrativa na qual a vítima se sente culpada ou sem saída. Quanto mais vulnerável a vítima for, mais eficiente será sua rede de controle. Por isso, crianças pequenas costumam ser o alvo principal desse tipo de agressor sexual.

Existe também o abusador oportunista, que não necessariamente planeja ou premedita seus atos. Ele simplesmente se aproveita de momentos de vulnerabilidade da vítima, quando as circunstâncias situacionais são favoráveis, para atacá-la. Esse tipo de agressor não está em busca de dor ou dominação explícita, mas sim de satisfação imediata. Sua principal motivação é o desejo sexual mal controlado, que encontra na oportunidade uma porta aberta para o crime. Esse perfil está frequentemente associado a ambientes familiares, educacionais ou religiosos, onde há proximidade constante com a vítima. Por não exibir traços evidentes de sadismo ou perversão, o abusador oportunista raramente levanta suspeitas.

Diferentemente dos outros perfis, há também o abusador solitário, que, diante de frustrações ou crises em sua vida adulta, recorre ao abuso sexual como forma de compensação emocional. Muitas vezes, esses indivíduos possuem histórico de relações sociais fragilizadas, baixa autoestima e dificuldades em estabelecer vínculos afetivos saudáveis. Em vez de buscar alívio em interações com pessoas de sua faixa etária, direcionam seus desejos para vítimas mais jovens ou vulneráveis. Esse tipo de agressor pode até demonstrar arrependimento após a agressão, mas seu ciclo de recaídas frequentes o leva a repetir o crime.

O que é a castração química?

“Castração química” é o termo popularmente usado para se referir a um tratamento hormonal em que inibidores de testosterona (principal hormônio relacionado ao desejo sexual em homens) são administrados para a diminuição da libido. O tratamento é realizado por meio de medicamentos injetáveis ou de uso oral e tem efeito temporário. Ou seja, com a suspensão do uso dos medicamentos, os efeitos dos inibidores gradualmente desaparecem.

Sendo a prática sexual forçada contra crianças e adolescentes considerada um crime hediondo pelo Código Penal, discute-se o uso da castração química como instrumento de controle desse comportamento, visando reduzir os impulsos sexuais de pedófilos. É apresentada como uma forma de esterilização “moralmente aceitável”, por não envolver mutilação e ser totalmente reversível.

Entretanto, é importante observar que essa prática não foi desenvolvida originalmente para tratar transtornos sexuais, mas sim para o manejo de condições clínicas como câncer de próstata e outras doenças. Além disso, há uma série de efeitos colaterais associados ao tratamento, além da diminuição do desejo sexual, como impedimento da ejaculação, atrofia testicular, redução da massa muscular, dores de cabeça, depressão, doenças cardiovasculares, câncer, osteoporose e trombose, entre outros.

Também é essencial destacar que esse tratamento não é eficaz em mulheres cisgênero. Apesar de ser menos comum no imaginário popular, mulheres também podem ser potenciais abusadoras sexuais de crianças e adolescentes, evidenciando a necessidade de abordar o problema de forma ampla e inclusiva.

Justificativa para castração química como pena

Dois dos principais argumentos para o uso da castração química como pena em casos de abusos sexuais contra crianças e adolescentes são o alto índice de ocorrência e reincidência desses crimes e o reconhecimento da pedofilia como uma condição patológica, o que demandaria um tratamento diferenciado em relação a outros tipos de crime. Segundo Serafim, um estudo realizado em 2008 e publicado na Revista de Psiquiatria Clínica revela que “mais da metade dos criminosos sexuais condenados que acabam de cumprir pena voltam para a penitenciária antes de um ano.”

Com isso, conclui-se que as chances de um pedófilo condenado voltar a praticar abusos sexuais são altas. Assim, a pena atual aplicada pelo Estado, baseada na privação de liberdade, pode ser considerada ineficaz ou insuficiente para evitar a reincidência.

Nesse contexto, a castração química surge como uma alternativa complementar à pena tradicional. Ela funcionaria não apenas como uma sanção imposta ao condenado, mas também como um tipo de tratamento para a sua condição. A ideia é que, ao retornar ao convívio social, o indivíduo, supostamente, não representaria mais um risco significativo à sociedade.

Eficácia da castração química

A pedofilia é um transtorno psicológico que pode ter diversas causas além da concentração de testosterona no organismo. De acordo com Serafim, entre os fatores estão dificuldade no controle da compulsão, incapacidade de manter uma relação conjugal estável, traumatismo cranioencefálico, psicoses, transtornos de personalidade e abuso de álcool ou substâncias psicoativas. Questões culturais e político-administrativas também podem ser mencionadas. Ademais, vale destacar que nem toda pessoa que comete crimes sexuais contra crianças e adolescentes é, necessariamente, pedófila.

A principal característica que atrai os agressores às crianças é a possibilidade de satisfação às custas de alguém mais frágil. Como distúrbio, a pedofilia se enquadra no grupo de preferências sexuais chamado de cronofilias, no qual a diferença de idade e a vulnerabilidade da vítima são fatores centrais. Frequentemente, o pedófilo apresenta uma sexualidade pouco desenvolvida e grande insegurança em se relacionar com parceiros em condições iguais. Assim, a criança é vista como objeto de desejo, pois não é capaz de consentir com os atos e oferece pouca ou nenhuma resistência devido à sua condição física e psíquica.

Embora a castração química possa inibir a libido do pedófilo, ela não altera sua personalidade nem trata os sintomas da doença de forma abrangente. Mesmo que o tratamento resulte na diminuição do desejo sexual e da capacidade de ejaculação, o indivíduo ainda pode encontrar outras formas de cometer abusos sexuais, muitas vezes de maneira ainda mais agressiva. Além disso, o criminoso pode continuar tendo fantasias e características perversas, utilizando outras estratégias prejudiciais para satisfazer suas necessidades.

Outro desafio está na obrigatoriedade da administração regular dos medicamentos. Caso o indivíduo não siga as doses prescritas, pode ocorrer um aumento na produção de testosterona, potencializando novamente a prática de crimes sexuais.

A reabilitação do indivíduo não depende apenas do tratamento hormonal. O suporte psicológico é essencial para analisar as características perversas da pessoa e reprimir comportamentos inapropriados, promovendo autoconhecimento e transformação pessoal.

É importante considerar também os riscos à saúde associados à terapia hormonal. Como já mencionado, esse procedimento pode provocar diversos problemas de saúde, incluindo doenças cardiovasculares, osteoporose e até mesmo morte. Além disso, a castração química não é aplicável em mulheres cisgênero e levanta questões sobre a violação de direitos humanos quando implantada como forma de punição.

Em entrevista à revista Guia-me, Danilo Baltieri, mestre e doutor em Medicina pelo Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e coordenador do ambulatório de transtornos da sexualidade da Faculdade de Medicina do ABC (ABSex), afirma:
“Medicações para controlar a ação da testosterona são muito poucas vezes necessárias para a população de pessoas que padecem da doença médica conhecida como pedofilia. A princípio, cerca de 90% dos portadores de pedofilia conseguem resposta terapêutica adequada através da psicoterapia e de medicações como antidepressivos e outras que auxiliam no controle dos impulsos sexuais desviados. Medicações hormonais podem ser necessárias para os restantes 10%, quando nenhuma outra forma de tratamento produz efeitos adequados em termos de cessação dos impulsos sexuais desviados.”

Com base nessa declaração e em tudo o que foi exposto, conclui-se que a terapia hormonal pode ser considerada em casos específicos de pedofilia, mas outros tipos de intervenção são mais eficazes para a maioria dos casos. Isso porque o abuso sexual não é motivado apenas pela busca de prazer sexual. Assim, é importante ressaltar que a castração química não é a solução definitiva para acabar com o estupro de vulneráveis e pode não ser tão eficaz como a população em geral espera.

Conclusão

O abuso sexual, em suas diversas formas, não é fruto de indivíduos desprovidos de racionalidade. Pelo contrário, ele emerge de motivações complexas, variando entre o prazer sádico na dor alheia, a busca por poder e a oportunidade ocasional. Cada perfil de abusador revela que o perigo raramente reside em figuras monstruosas e caricatas, mas sim em indivíduos comuns, muitas vezes acima de qualquer suspeita que caminham ao nosso lado todos os dias.

Reconhecer essa realidade desconfortável é um grande passo na luta contra a violência sexual. A conscientização sobre as diferentes motivações por trás das ações hediondas dos abusadores é importante para quebrar os estereótipos que limitam nossa visão da realidade, e permitem que preconcepções impeçam nosso julgamento, ampliando a percepção de quem são os agressores e como eles agem, mais do que nunca, é uma ferramenta de proteção. Atentar-se ao fato de que, na maioria dos casos, o abusador está inserido no círculo social ou familiar da vítima.

Além disso, também é preciso investir na prevenção desses crimes de natureza sexual. Implantar nas escolas aulas sobre educação sexual adequadas à faixa-etária de cada turma, dar treinamentos e fortalecer a ação policial, divulgar a população canais de denúncia e informar a população sobre sinais de alerta de abuso físico, sexual e psicológico contra a criança são alguns exemplos de medidas que podem ser implantadas para evitar a alta na incidência de crimes contra populações vulneráveis.

Somente com informação e vigilância podemos construir uma sociedade onde as vítimas se sintam seguras o suficiente para denunciar os abusos, onde os agressores, independentemente de seus perfis, sejam identificados e responsabilizados. O combate ao abuso sexual exige uma postura ativa, e a verdadeira prevenção só começa quando enxergamos o problema por trás da máscara.

Fontes

  1. Novo boletim epidemiológico aponta casos de violência sexual contra crianças e adolescentes no Brasil
  2. Artigo científico sobre violência sexual contra crianças e adolescentes (PePSIC)
  3. Estudo sobre aspectos clínicos e legais da pedofilia (SciELO)
  4. Repositório Aberto – Universidade do Porto
  5. Castração química: quais os impactos médicos e legais? (G1)
  6. Artigo sobre violência sexual e suas implicações legais (Revistas USP)
  7. Bioética e pedofilia: análise crítica (SciELO)
  8. Repositório Uniceub – estudo sobre transtornos sexuais
  9. Estudo sobre políticas públicas e pedofilia (Unicesumar)
  10. Pedofilia é doença? (Guia-me)
  11. Estudo jurídico sobre pedofilia (PUCRS)
  12. Impactos sociais da pedofilia: estudo acadêmico (URICER)

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