Castração química: Parlamentares ignoram o fortalecimento de mecanismos de prevenção em prol da promoção da polêmica

PL 2630 ato em defesa das crianças

A cada oito minutos, uma criança ou adolescente é vítima de violência sexual no Brasil, um dado alarmante que evidencia a gravidade e a urgência desse problema. Esse tipo de crime é uma das maiores afrontas à dignidade humana e demanda respostas firmes do poder público, das instituições e da sociedade como um todo. Recentemente, a Câmara dos Deputados aprovou um projeto de lei que prevê a aplicação da chamada “castração química” como parte da pena para crimes sexuais envolvendo menores de idade. O texto aprovado, um substitutivo para o Projeto de Lei 3976/20, também propõe a criação de mecanismos para aumentar a vigilância sobre condenados, como o Cadastro Nacional de Pedófilos e Predadores Sexuais.

Entretanto, a despeito do substitutivo ao PL 3976/200, a Lei 15.035/24, sancionada pelo presidente em novembro de 2024, já determinou a criação desse cadastro, que será composto a partir dos dados do Cadastro Nacional de Pessoas Condenadas por Crime de Estupro. Ele incluirá informações detalhadas sobre os condenados, como fotografias e outros registros. A medida busca ampliar o controle e a vigilância sobre indivíduos condenados por crimes sexuais contra crianças e adolescentes, previstos tanto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) quanto no Código Penal.

Entre os crimes que constarão no cadastro estão estupro de vulnerável, corrupção de menores, exploração sexual de crianças e adolescentes e crimes digitais, como a produção, armazenamento, divulgação ou exposição de vídeos envolvendo crianças ou adolescentes em situações de violência sexual. A criação desse cadastro é vista como uma ferramenta importante para a prevenção de novos crimes e o monitoramento de infratores, mas especialistas alertam que medidas complementares são indispensáveis para combater as causas estruturais e sociais desse tipo de violência.

Entendendo a Pedofilia
A pedofilia, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), é classificada como um transtorno da preferência sexual, caracterizado pela atração sexual de adultos por crianças, geralmente pré-púberes ou no início da puberdade. Contudo, é essencial diferenciar a pedofilia enquanto uma condição psiquiátrica da prática criminosa. Embora esteja presente em muitos casos de violência sexual contra crianças, nem todos os agressores envolvidos nesses crimes se enquadram nesse diagnóstico. Além disso, é fundamental destacar que a prática desse crime frequentemente está baseada na busca por dominação e poder sobre a vítima, configurando um ato violento que transcende o desejo sexual.

A “Castração Química” e o Contexto Brasileiro
A chamada “castração química” é um procedimento médico que envolve a administração de medicamentos hormonais com o objetivo de inibir a libido. Esses medicamentos, geralmente inibidores de testosterona, atuam no organismo reduzindo a produção e os efeitos desse hormônio, que é o principal responsável pelo desejo sexual masculino.

Os fármacos utilizados podem ser administrados por meio de injeções intramusculares periódicas ou em forma de comprimidos de uso contínuo, dependendo do protocolo adotado. Esses medicamentos bloqueiam os sinais da hipófise que estimulam a produção de testosterona nos testículos, o que leva à diminuição do desejo sexual, da capacidade de ereção e, em alguns casos, da capacidade de ejaculação.

É extremamente importante ressaltar que os efeitos da “castração química” não são permanentes. Ao interromper o tratamento, o organismo gradualmente retoma a produção natural de testosterona, e a libido pode ser restabelecida.

Do ponto de vista médico, o tratamento pode acarretar efeitos colaterais significativos, como alterações no metabolismo, perda de densidade óssea, redução da massa muscular, fadiga, depressão e outros transtornos psicológicos. Esses riscos ampliam o debate sobre a proporcionalidade e a adequação dessa medida como política punitiva, bem como as implicações que esse quadro pode acarretar em indivíduos com histórico de práticas violentas.

Entendimento Constitucional sobre a castração química no Brasil

A proposta de adoção da “castração química” como parte da pena para crimes sexuais levanta uma série de questionamentos do ponto de vista constitucional no Brasil. O debate gira em torno de princípios fundamentais, como a dignidade da pessoa humana, os direitos fundamentais, a vedação de penas cruéis e o tratamento dos condenados, especialmente sob a ótica do Estado Democrático de Direito.

A dignidade da pessoa humana, prevista no Artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal, é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil e serve como base para todas as ações do Estado, inclusive no campo penal. A autonomia corporal e o consentimento, garantidos pelo Artigo 5º, inciso II, reforçam que ninguém pode ser obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei. Assim, a imposição de um tratamento invasivo, como a castração química, sem o consentimento do indivíduo, pode ser interpretada como uma afronta a esse princípio.

A vedação à tortura e às penas cruéis, prevista nos incisos III e XLVII do mesmo artigo, também é um ponto central. A aplicação compulsória da castração química pode ser vista como uma medida desumana e degradante, contrariando o que determina a Constituição. Além disso, o direito à saúde, reconhecido como um direito social fundamental no Artigo 6º e no Artigo 196, que responsabiliza o Estado por sua promoção e proteção, é outro aspecto relevante. O uso de medicamentos para fins penais, especialmente sem comprovação científica robusta sobre sua eficácia e segurança, pode ser interpretado como uma violação desse direito, além de contrariar o princípio da proporcionalidade, já que os graves efeitos colaterais dessa medida podem ser desproporcionais em relação ao objetivo de prevenir novos crimes.

Outro ponto essencial é a finalidade da pena, que, de acordo com a Constituição e a Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/1984), deve ser a reinserção social do condenado, visando sua reintegração à sociedade. A castração química, por suas características, desconsidera essa premissa, sendo incompatível com a política penal brasileira. A aplicação de penas ou medidas restritivas de direitos também deve observar o princípio da reserva legal, estabelecido no Artigo 5º, inciso XXXIX, que determina que apenas a lei pode definir crimes e penas. Qualquer projeto de lei que autorize a castração química precisará passar pelo crivo do Supremo Tribunal Federal (STF), que verificará sua conformidade com a Constituição. Considerando o histórico do STF, é altamente provável que a medida seja considerada inconstitucional, especialmente se for aplicada de maneira compulsória.

Além disso, a proposta viola tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário, como a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, que proíbem penas desumanas e cruéis. A aprovação da castração química poderia expor o Brasil à responsabilização internacional por descumprir obrigações pactuadas.

Assim, além das dúvidas sobre sua eficácia, a castração química levanta sérias questões éticas, jurídicas e constitucionais, indicando que a medida é incompatível com o ordenamento jurídico brasileiro e com os compromissos internacionais assumidos pelo país.

Parlamentares ignoram o fortalecimento de medidas já existentes

A redução dos casos de pedofilia e crimes sexuais contra crianças e adolescentes exige uma abordagem multidimensional, que englobe educação, prevenção, tratamento, fortalecimento das instituições e uma legislação eficaz. Entretanto, muitos legisladores têm negligenciado o fortalecimento de ações já previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e na recente Lei nº 14.344/2022, conhecida como Lei Henry Borel, que reforça a integração entre os sistemas de justiça, saúde, segurança pública e assistência social, além de ter promovido alterações no Código Penal, na Lei de Execução Penal, na Lei de Crimes Hediondos, na Lei nº 13.431/2017 (sistema de garantia de direitos de crianças e adolescentes vítimas e testemunhas de violência), e no próprio ECA, com o objetivo de estabelecer um sistema de garantia de direitos para crianças e adolescentes vítimas de violência.

Fortalecimento das policias e uso da tecnologia

O fortalecimento e o financiamento das polícias federal e estaduais são essenciais para desmantelar redes de pedofilia, especialmente no ambiente digital. O uso da tecnologia é um aliado estratégico, permitindo o monitoramento de crimes virtuais por meio de unidades especializadas em crimes cibernéticos. Investimentos em inteligência artificial podem rastrear conteúdos de pornografia infantil, combatendo sua circulação.

Prevenção e educação

Paralelamente, é fundamental educar crianças e adolescentes sobre segurança na internet, alertando-os sobre os riscos de contato com desconhecidos e do compartilhamento de informações pessoais. A prevenção começa com a educação sexual nas escolas, adaptada a cada faixa etária, ensinando noções de respeito, consentimento e proteção contra abusos. Educadores devem ser capacitados para identificar sinais de abuso e orientar os alunos a buscar ajuda. Campanhas públicas são igualmente importantes para informar a população sobre o que caracteriza abuso sexual e pedofilia, divulgando canais de denúncia como o Disque 100.

Pais e cuidadores precisam ser orientados por meio de palestras e oficinas, aprendendo a abordar o tema com as crianças, identificar sinais de abuso e estimular um diálogo aberto em casa.

Reforço legal e institucional

Investir em Conselhos Tutelares, em estruturas públicas especializadas e órgãos de proteção à infância é essencial para garantir suporte às vítimas e celeridade nos processos judiciais. É necessário ampliar os canais de denúncia e integrar as informações entre os órgãos de segurança pública e justiça. O fortalecimento das polícias federal e judiciárias estaduais é indispensável para combater redes de pedofilia, especialmente as que operam no ambiente digital.

Apoio às vítimas e reabilitação

O apoio terapêutico às vítimas e o tratamento para agressores são fundamentais. Devem ser criados programas de atendimento psicoterapêutico e psiquiátrico para indivíduos com transtornos relacionados à pedofilia, especialmente para aqueles que buscam ajuda antes de cometer crimes. Centros especializados no atendimento psicológico e social para vítimas de abuso e suas famílias devem ser estruturados para promover a recuperação emocional e prevenir traumas futuros.

Mobilização comunitária e participação social

A mobilização comunitária é crucial. Líderes religiosos, culturais e comunitários devem ser envolvidos em campanhas de conscientização e proteção. A criação de espaços seguros, como atividades extracurriculares, esportes e artes, ajuda a ocupar o tempo das crianças e fortalece redes de apoio comunitário.

A articulação entre escolas, unidades de saúde, assistência social, sistema de justiça e organizações não governamentais é indispensável para uma atuação preventiva e integrada.

Pesquisa e capacitação

Investimentos em estudos acadêmicos e científicos são essenciais para compreender os fatores que levam ao abuso, desenvolvendo estratégias mais eficazes de prevenção e tratamento. Profissionais da saúde, educação, assistência social e segurança pública devem ser continuamente treinados para lidar com casos de pedofilia e abuso sexual de forma ética e eficaz.

A pedofilia e o abuso sexual de crianças são problemas complexos que exigem ações integradas e de longo prazo. Uma solução eficaz deve equilibrar prevenção, repressão e reabilitação, sempre respeitando os princípios constitucionais e os direitos humanos. A erradicação desse crime não depende apenas do sistema de justiça, mas de um esforço coletivo que envolva toda a sociedade.

O combate a esses crimes não pode ser instrumentalizado por políticos que buscam visibilidade ou votos nas redes sociais, ignorando o fortalecimento de medidas já existentes. É necessário focar na preservação das vítimas e no alcance de resultados concretos.

Imagem de capa ilustrativa.

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